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Aqui está a verdade final sobre os filmes de horror.
Eles não amam a morte, como alguns têm proposto,
amam a vida. Eles não celebram a deformidade, mas,
ao habitá-la, cantam a saúde e a energia.
Eles são os purificadores da mente, tirando não
rancor, mas ansiedade.
Stephen King, Dança Macabra.
A
emoção mais forte e mais antiga do homem é
o medo, e a espécie mais forte e mais antiga de medo
é o medo do desconhecido. Poucos psicólogos
contestarão tais fatos e a sua verdade admitida deve
firmar para sempre a autenticidade e a dignidade
das narrações fantásticas de horror como forma
literária.
H. P. Lovecraft, O Horror Sobrenatural na Literatura.
Mas, afinal, o que é o verdadeiro horror?
Que sentimento é este, ao mesmo tempo, proibido, letal
e desesperador, que seduz a humanidade há séculos?
Como se propagou ao longo dos tempos? O que é o horror
agora? O que foi antes? E como era nos primórdios do cinema?
Desde os imemoriais tempos das cavernas, o homem,
atraído pelo que não pode entender, retrata o que
teme. Não raro os desenhos e rabiscos rupestres demonstravam
o perigo das florestas e das caçadas. Trovões, relâmpagos,
chuvas, erupções vulcânicas, terremotos, tufões,
eclipses, enfim, toda sorte de intempéries eram interpretadas
como sinais dos deuses (ou de demônios); indícios
vingativos, de aproximação do fim, punições,
castigos místicos indecifráveis. A floresta não
passava de uma enorme ratoeira humana. Lá, na escuridão,
entre folhas, animais sibilantes e olhos escarlates sempre atentos,
vivia o verdadeiro mal. Assim, também era o mar, um
ambiente inóspito, turvo, escuro e incerto, povoado por
estranhas criaturas.
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O que dizer, então, dos contos infantis
dos irmãos Grimm, Han Christian Andersen e de tantos outros?
Hansel e Gretel são deixados à mercê de uma
bruxa canibal enquanto Chapéuzinho Vermelho é molestada pelo primeiro lobo que se disfarça na mata.
O cinema, por sua vez, sempre tentou retratar
o horror, e a maneira como ele nos atinge. Desde a exploração
do indizível e do desconhecido no horror gótico
do século XIX – Bram Stoker, Poe, Lovecraft,
Carmilla, W.W. Jacobs, Maupassant, Bierce etc – até o
horror cyberpunk dos tempos atuais – Alien, Predador,
Resident evil – uma coisa sempre foi constante nas
películas: o Medo.
Princípios
O medo e o terror são estados ideais a serem
retratados pelo cinema. Que outra mídia poderia captar,
de maneira fidedigna, os sons, as imagens, os climas e as
situações que compõe o genuíno terror? Na sala escura,
há um certo desprendimento, uma disposição para aceitar
o improvável. É quando aflora o inconsciente e o
torpor faz extravasar nossa fantasias irracionais. Talvez,
por isso, o cinema fantástico seja visto como escapismo
de pouca importância. No entanto, se há escape de
nossa realidade cotidiana, o destino são os nossos
medos, o proibido, o tabu de época e a patologia de
nosso tempo.
Desde meados do século retrasado, quando
se realizaram os primeiros experimentos com sais de prata, levando
à descoberta da fotografia, e o aperfeiçoamento
da captação de luz que resultaram no cinema, o imaginário
popular passou a conviver com um rico gênero literário
transformado em imagem na telas, o chamado horror gótico.
O horror gótico
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Temos, como obra literária marcante do
horror gótico (pouco antes da invenção do cinema), o
conhecido Drácula, de Bram Stoker, que
estabeleceu o padrão (mais tarde estereotipado) do
gênero. Os escritos do americano Ambroise Bierce (desaparecido
após ir para a guerra no México, no início do
século vinte. Curiosamente, Bierce tem inúmeras
histórias de horror que lidam com desaparecimentos), Edgar
Alan Poe, Guy de Maupassant, Arthur Conan Doyle, Mary Shelley,
Robert Louis Stevenson, Anatole France, M. G. Lewis, Charles
Maturin e muitos outros forneceram a base para o
surgimento dos primeiros fotogramas de terror.
George Mélies
De certa forma, a primeira exibição
pública feita pelos irmãos Lumiére teve o efeito de
um filme de terror. Quando A chegada do trem à estação
foi exibido, causou frenesi e inquietação entre os
presentes. Muitos tentaram se proteger do bólido, que
parecia invadir o recinto. Esse elemento chocante sempre esteve
presente no cinema, a função de surpresa, de quebra
da tradição, de emulação da realidade (com
intensificação da catarse e da participação do público
em seus momentos agradáveis… e, em se tratando de
horror, nos desagradáveis) é parte da própria definição
de o que deve ser o cinema.
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A tecnologia no cinema estava apenas engatinhando.
Ele inventou e estudou, então, inúmeros mecanismos
para criar os mais diversos efeitos. Seus estudos de múltipla
exposição são conhecidos até hoje e
criam o efeito de se ver objetos e pessoas aparecendo e desaparecendo
à distância ou mudando de forma. Foi o primeiro cineasta
a se envolver de maneira séria no cinema fantástico
e a obter resultados interessantes na tela. Sua abordagem
dos mitos do monstro do pólo norte, vampiros, viagens
espaciais e outras ficções improváveis permanecem como
exemplos clássicos e estabeleceram, na época, o
conceito de efeitos especiais.
Entretanto, Mélies era muito mais um mágico
do que um cineasta, e, com o paralelo desenvolvimento da narrativa
cinematográfica por outros e a falta de uma política
capitalizadora por parte de seu estúdio, ele se tornou,
lentamente, obsoleto diante de nomes como Murnau, Edwin
S. Porter e David W. Griffith, que investiram pesado
na narrativa e montagem. Ele terminou seus dias, após a
falência de sua produtora, em 1913, vendendo pequenos
brinquedos e jogos de mágica em banquinhas nas ruas de
Paris, vindo a falecer em 1938.
As experiências de George Mélies no
cinema ainda incipiente foram vagamente cômicas. O intuito
do antigo mágico de circo era entreter, valendo-se dos
efeitos e maquinários para realizar seus filmes (cenários
gigantescos, luas com rostos, foguetes voadores etc.). Somente
com o passar dos anos, o terror pôde amadurecer e
expandir-se. O tempo trouxe novas obras tanto nos
Estados Unidos quanto na Europa.
Experimento tecnológico
Em 1910, Edison faz a primeira versão cinematográfica de Frankenstein,
(inspirada nas inúmeras adaptações teatrais da época).
Neste filme, temos um tema agregado ao próprio
conceito de cinema: O Dr. Frankenstein, obcecado com a idéia de manipular a vida, constrói um experimento que o levará à ruína.
O cinema também era um experimento tecnológico,
o final do século XIX, com seu impressionante e vertiginoso
avanço (alavancado pela revolução industrial,
seguido do desenvolvimento de máquinas mais potentes, motores
a explosão, etc) impressionava e assustava as pessoas que
não estavam preparadas para lidar com as conseqüências
éticas e morais dessas novas descobertas.
Atualmente, vivemos uma situação
semelhante. Com o desenvolvimento da engenharia genética,
podemos manipular o mapa cromossômico do ser humano, o DNA
está a nossa mercê para que possamos criar quantos
transgênicos quisermos. Assim como o Dr. Frankenstein,
temos a oportunidade de brincar de Deus, de manipular a
vida, e a forma como ela virá a ser. Ao monstro, a vida
é dada, mas ele não passa de um tubo de ensaio, um
teste bem-sucedido, um experimento que sente, sofre e
chora, e se vinga quando seu criador se esquece disso.
O horror é visionário. Daí, o conto de
terror ter capturado de maneira consistente nossos
medos e ansiedades coletivas. Filmes como Frankenstein mostram
que, muitas vezes, o inimigo vem de dentro, e não do
desconhecido. Eis aí a crítica à prepotência e à
arrogância do autocentrismo que não admite questionamento
ou reavaliação.
Cesare e o inconsciente
Um dos pontos marcantes do cinema de horror é o clássico O gabinete do Dr. Caligari,
de Robert Wiene. Supostamente, Wiene não teria passado
de um diretor contratado. Fritz Lang, que mais tarde
faria, no gênero horror, o imortal M – O vampiro de Dusseldorf deveria ter dirigido o filme, mas não pôde devido a obrigações previamente assumidas.
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Agora, doenças como histeria e esquizofrenia
passaram a ser vistas como distúrbios do psiquismo, e não
mais possessão por espíritos ou outras interpretações
mitológicas. Isso, porém, suscitou uma gama de temores.
Afinal, se temos um inconsciente, há uma parte de nossa
alma fora de nosso controle. A mente torna-se o nosso medo.
Caligari, então, passa-se em um asilo, onde
dois internos conversam. Toda a perspectiva do filme é
irregular e inconstante. Os artistas contratados para pintar os
cenários (membros do grupo avant-garde Der Sturm),
fizeram jus ao mais sóbrio estilo expressionista
alemão. As próprias paredes curvas e suas perspectivas
incongruentes nos remetem ao caos e à insanidade
interior. Cada curva é uma perturbação mental, cada
sombra irregular é uma alegoria às neuroses psíquicas
de nossa mente.
Não é para menos que causou forte
impressão a história de um interno de asilo que narra
suas vivências por meio de uma visão distorcida e
fragmentada do mundo, tecendo uma bizarra trama sobre um sonâmbulo
e seu mestre maligno. O medo, em Caligari, vem da
psicanálise, da estranha descoberta de que nosso
inimigo pode estar em nós mesmos. O que aterroriza o
homem do início do século vinte é saber que não tem
total domínio sobre si. O Dr. Caligari pode ser
encarado como uma metáfora do inconsciente nos
obrigando a realizar nossos desejos proibidos e não
reconhecidos. Assim como o sonâmbulo Cesare que obedece
aos comandos de seu amo, nós também não temos escolha.
O espectro da guerra
A Europa havia acabado de passar pela traumática
experiência da Primeira Guerra Mundial, e a Alemanha,
particularmente sofrida no evento, sucumbia aos
momentos mais terríveis desde a sua unificação. Há,
então, quem veja, no filme, a sugestão de que as
autoridades foram criminosas e insanas, exigindo que
soldados cegamente obedientes cometessem milhares de
assassinatos.
Por outro lado, o filme quebrava com o realismo
e o naturalismo vigentes no cinema até então (exceção
feita a Mélies), com o cinema transcendendo o realismo
fotográfico e ousando com imagens abstratas e irreais da
arte moderna. Esse tipo de cinematografia, de certa forma,
continua pouco explorado até hoje.
Conrad Veidt ficou assustador como Cesare, com
sua fantasmagórica maquiagem branca e roupa preta. Wiene
fez um excelente trabalho cujo sucesso jamais conseguiu
repetir. Caligari é um marco do cinema, e um dos
pilares do horror psicológico.
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A década de vinte consagrou adaptações de clássicos como O corcunda de Notre-Dame, Dr. Jekyll e Mr.Hyde, O cão dos Baskervilles.
Foram anos que dividiram o gênero em duas vertentes: a
americana e a européia. Nos Estados Unidos, o horror
teve mais a função de entretenimento, enquanto que, na
Europa, sua sutileza transpirava mensagens mais
complexas.
Até Griffith fez filmes de horror, como One exciting night, 1922, no qual temos a exploração de uma casa mal-assombrada. Em Jekyll e Hyde
de 1920, produzido por Zukor (mais tarde dono da FOX), podemos
ver mais uma vez o tema da psicanálise na investigação
da dupla personalidade. O Dr. Henry Jekyll separa o
bem e o mal em sua personalidade, com um misterioso
experimento químico, criando assim um alter ego
monstruoso. Em 1921, houve o lançamento de Nosferatu, de Murnau, o primeiro dos grandes filmes de vampiro.
Sangue Erótico
Sendo uma adaptação não-oficial do livro Drácula, de Bram Stoker, Nosferatu
causou enorme celeuma ao ser lançado nos cinemas. Após
processo movido pela família de Stoker, um juiz inglês
ordenou que todas as cópias do filme fossem destruídas.
Felizmente, a maior parte das alemãs sobreviveu, deixando
o legado que prova sua reputação como um dos maiores
feitos cinematográficos da história.
Toda a sexualidade reprimida do início
do século passado está presente em Nosferatu. O desejo
do protagonista por sangue beira a tensão erótica. O
frenesi que o vampiro alcança ao morder sua vítima pode
ser entendido como o ápice da excitação. Como ele se
alimenta, com igual apetite, tanto de homens quanto de
mulheres, temos ainda um perfil andrógino e de sexualidade
indefinida. Por sua vez, confirmando o caráter sexual do
ato, quem é mordido também passa por uma catarse
libidinosa. Sem oferecer resistência e de forma masoquista,
deleita-se com a violência.
O conceito de vampiro, então, é
sensual. Sua ambientação noturna impregna-se caráter
erótico. Muitos chegaram ao exagero de dizer que Max Schreck,
com sua pesada maquiagem, calva, levantando-se de seu caixão
na Transilvânia representaria em si uma ereção.
Horror para toda a família
Longe do pesado terror europeu, no novo continente,
a escola americana de entretenimento, representada por
películas com o ator Lon Chaney (o homem de mil faces)
como O fantasma da Ópera (1924) e O corcunda de Notre-Dame (1923), The magician, (1926) e London after midnight
(1927), vivia anos de glória. Pavimentava-se, assim, o
caminho para o estúdio Universal. Horror mais leve, despretensioso
e divertido, esta variedade de filmes era acessível ao
público médio e à tradicional família
americana.
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Ainda no tema vampiros, o excelente Vampyr
(1931), de Carl Theodore Dreyer, delineia a história do
jovem David Gray que se envolve com duas irmãs: Leone,
que aparenta morrer de alguma doença misteriosa, e Gisele,
supostamente prisioneira. Estranhos acontecimentos envolvem o
trio, quando Gray dá-se conta que as moças estão
sob o domínio de alguma estranha força. O filme
tem um contraste exótico presente nos seus efeitos de chiaroscuro,
bem como faz menção a sonhos e ao inconsciente.
David Gray, em certa cena, chega a sonhar com o seu próprio
funeral, e nós espectadores podemos ver o mundo a partir
da perspectiva enevoada de um caixão.
Muitas outras seqüências da película
seguem a mesma linha abstrata e irregular. Aparentemente desconexas,
há diversas cenas que quebram o fio narrativo, como um
sabá de bruxas, a visão curiosa de um homem de uma
perna só e sua sombra, etc. Mais uma vez, estão
aí temas psicanalíticos em voga na época: sonhos e
desejos reprimidos.
Aberrações
Em 1932, Todd Browning, o genial mestre do horror
por trás de várias parcerias com o enigmático
Lon Chaney e o Drácula de Lugosi, fez outro filme espetacular: Freaks. Trata-se de uma terrível colisão da normalidade com a anormalidade.
No circo, Baclanova, uma artista de trapézio,
casa-se com um anão, interessada apenas na riqueza do noivo.
Com a ajuda do amante, o levantador de pesos Vitor, ela
pretende envenená-lo. O anão inclui-se na seleção
de anomalias do circo: a mulher barbada, os gêmeos siameses,
o hidrocéfalo, o homem cujos quatro membros foram
amputados e que, usa a boca para apanhar o que deseja e
a mulher com o crânio subdesenvolvido. Enfim, os
horrores do picadeiro. Quando descobrem o plano de
Baclanova, o grupo mutila-a com facas, numa cena dantesca.
Com muito vagar transformam-na em outra aberração.
O filme causou polêmica quando lançado
(Browning usou aberrações, ou pessoas realmente
deformadas) e foi proibido na Inglaterra por trinta anos. Apresenta
uma visão humanista do mundo, tendo como tema central o
tradicional julgar pelas aparências. As aberrações
são encaradas como vítimas inocentes de uma sociedade
que não as tolera e as segrega. Nossa repulsa inicial por
elas torna-se lentamente compreensão.
Terror Atômico
Na década de cinquqenta, após o fim
da Segunda Guerra Mundial, floresce um horror próprio da
Guerra Fria, levando o gótico ao esquecimento. Houve, porém,
ao longo dos anos, retornos pontuais deste gênero, mas jamais
um ressurgimento completo dessa era de ouro do cinema
de horror. O filme baseado no livro da escritora Anne
Rice, Entrevista com vampiro foi um destes raros momentos.
Com o emprego das bombas atômicas em seres
humanos, impôs-se um novo terror. Os monstros agora eram
mutações causadas pela radiação. Os vampiros,
gólems, sonâmbulos, castelos mal-assombrados e demônios
do passado foram substituídos pelo medo do apocalipse
nuclear, da ciência sem ética e da tecnologia
descontrolada. Porém, a essência última do terror
continuava a mesma. Como explicou o Dreyer, diretor de
Vampyr, “quero criar um pesadelo acordado, e mostrar
que o horrível não esta ao redor de nós, mas em nossa
própria mente inconsciente”. Quer nosso medo
provenha de cientistas loucos, vampiros, lobisomens e
monstros, ele não passa do temor de nós mesmos e da
imprevisibilidade da mente humana”.
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